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Um filme de Mel Gibson, depois de Braveheart
Ressalta no filme a sua vertente épica. Gibson não tem rodeios e puxa de todas as armas que tem ao seu dispor de modo a levar cada cena ao limite. A banda sonora é bastante má, pomposa, chegando mesmo em algumas cenas a assumir o protagonismo. Fácil. As já famosas cenas em slow motion são demasiadas. Repetem-se, e repetem-se, até à exaustão. A maior parte delas não funciona, não adiciona nada à narrativa. O beijo de Judas, por exemplo, ganharia muito mais se fosse filmado “a seco”, simples, cruel. E como este há muitos outros exemplos. Gibson parece uma criança que descobriu o manual de cinematografia no sótão lá de casa.
O trabalho de reconstituição de época é impecável. Os cenários escolhidos, as cores utilizadas (repararam na ausência de verde?), o guarda-roupa, tudo está no sítio. Somos, neste campo, transportados até ao início da nossa era.
Os actores: um bom casting. Jim Caviezel é um Cristo sem mácula. Tem uma cara de todos os dias, que lhe confere um anonimato conveniente. Não é o Cristo do nariz grande, nem o Cristo dos olhos azuis. Passa muito bem (no meu imaginário) por Cristo. Maria é competente. É talvez a personagem mais realista, mais depurada, mais simples. É-nos apresentada como mulher e mãe. Sofre mais do que ninguém. Maria Madalena é Monica Bellucci, e disso nunca nos chegamos a esquecer. Chegamos então à minha interpretação preferida: Pedro. Aliás, todos os apóstolos são apostas ganhas. Neles vemos a dúvida, a tristeza, a inquietação, o sofrimento. Pedro lidera. A cena da tripla negação é comovente. É em Pedro que nos vemos. Na sua angústia na negação.
Refira-se ainda uma personagem surpresa: o homem que ajuda Jesus a carregar a cruz (Simão Cireneu). Surpresa devido ao seu peso na narrativa. Uma personagem bastante complexa que contrasta com a unidimensionalidade vigente. Os Evangelhos condedem-lhe uma linha e meia. No filme Gibson trabalha muito bem este homem. Utiliza-o para centrar as atenções na fraqueza humana: primeiro a negação, depois o arrependimento. É o exemplo mais forte de como Jesus mudou a vida de quem tocou.
Quanto à violência há três momentos distintos: a flagelação, o carregar da cruz, e a crucificação. A cena mais conseguida é a da flagelação. Gibson tira-nos as legendas, mas o Latim dos romanos é perceptível. A contagem das agressões carrega um ódio puro. A crucificação perde por ser o último momento do filme. Ou seja, depois do que nos é mostrado, a crucificação (que qualquer espectador espera desde o início do filme) reduz-se a uma inevitabilidade evidente. O espectador já vai anestesiado. Quanto à cena do carregar da cruz, Gibson deita tudo a perder. Sempre que Jesus cai, cai em slow-motion. Era preciso?
Tudo isto faz, na minha opinião, um filme medíocre. Demasiado artificializado para comover. Apesar da violência. O que me surpreendeu. O sangue não dá origem a nada. Cai no chão de pedra para aí ficar.
O Evangelho segundo Gibson
Muitos me tinham dito, apoiados numa pretensa frase do Papa entretanto desmentida pelo Vaticano, que o filme “está como foi”. Que não se desvia um milímetro das escrituras. É verdade. Esse é o grande trunfo do filme: não se trai. Não cai em armadilhas que lhe poderiam valer o desrespeito. O carácter subjectivo e interpretativo. Neste caso, Gibson foi fiel. O problema está na brevidade das últimas 12 horas de Jesus nos evangelhos: tudo é relatado no essencial. Daí para a frente é preencher o vazio. E neste filme há demasiados vazios a serem preenchidos.
Começo com uma divergência de base: se fizesse (e tivesse os meios extraordinários para o fazer) um filme sobre Jesus, jamais seria sobre as últimas 12 horas. Não é esse o centro da Fé, da Sua mensagem (tirando a morte, obviamente). Um filme que dedica 15 minutos à flagelação (único momento onde as legendas desaparecem) e 30 segundos à Última Ceia (em flashback) é bastante honesto na sua pretensão: chocar. Gibson quis abanar a nossa suposta “Fé em adormecimento”. Pôr diante dos nossos olhos o sangue derramado. Mas reduz Cristo ao seu corpo e a umas quantas breves falas de esperança. É pouco.
Um dos aspectos que me afastam completamente da visão de Gibson são as representações do Diabo. Completamente figurativas e ridículas. A figura assexuada que vai fazendo súbitas aparições apela mais ao riso (que de facto presenciei na sala, um grupo de jovens divertidos) do que ao temor. Mas eu posso ser suspeito. O Diabo como pessoa é-me bastante indiferente e alheio. Nada, e sublinho a palavra nada, tem a ver com a minha fé. As outras duas representações de Belzebu são ainda mais patéticas: crianças demonizadas através do seu envelhecimento (que conduzem Judas ao seu suicídio, numa das cenas mais questionáveis de todo o filme); e uma figura animalesca que ruge no canto do ecrã durante um fragmento de segundo. A Tentação não está decididamente bem retratada.
O povo, Judeu e Romano, reduz-se neste filme a uma massa anónima. Sem profundidade, sem dúvida, sem complexidade. Uma voz única. Há, apesar disso, duas ou três manifestações que tentam mostrar a outra face de um Templo condenatório, ou de uma multidão sequiosa de sangue. Mas são desprezadas. Teologicamente desprezadas, pois “fomos nós que matámos Cristo”. E fomos. Mas volto a dizer que me senti mais próximo de Pedro do que de outro qualquer. Em Pedro encontramos uma humanidade tocante. Sendo Pedro a primeira pedra da Igreja, é reconfortante vê-lo bem retratado. A dúvida e a hesitação vêm desde a primeira hora. Simão Cireneu é uma boa descoberta de Gibson. Nos evangelhos, não é mais do que um homem obrigado a ajudar Jesus. No filme assume um protagonismo acertado. Este tem a frase mais fantástica e comovente de todo o filme (e que não se encontra nos Evangelhos). Quando é forçado a carregar a cruz exclama: “Sou um inocente que carrega a cruz de um condenado”. Imediatamente nos assola a verdade dessa cena. Aquilo que constitui a nossa Fé, aquilo que define a Paixão: afinal, somos todos condenados que carregamos a cruz de um inocente. E na morte do Inocente nos libertamos da condenação.
Como católico o filme nada me diz. Como arte religiosa (que afinal é do que se trata) há na História enúmeras representações da Paixão mais comoventes, mais interpelativas, mais fortes, que reduzem esta Paixão segundo Gibson a um objecto simplista. Que explora o corpo. E o mais angustiante é que essa exploração parece não ter objectivo. Mal Jesus sucumbe, Gibson desinteressa-se. Não há mais violência. Não vale a pena continuar a filmar. A audiência está ganha. Basta um close-up de Caviezel ressussitado e corre-se o pano. End of story.
Apesar da minha desilusão, não condeno Gibson. A minha opinião nada vale face a tantas outras que são opostas e que vêem no filme um objecto artístico importante. Fico contente que «The Passion of the Christ» tenha ajudado muitas pessoas na sua fé. A mim não ajudou. Mas isso não interessa realmente nada. Mesmo que Gibson insista nisso, uma produção de Hollywood nunca pode ser vista como um acto religioso. Porque este filme não se confunde com a religião católica. Exemplifico: este Domingo (de Ramos) o evangelho (S. Lucas) descreve este mesmo episódio. No momento da leitura em que Jesus morre, fez-se uma pausa. A assembleia silenciou-se totalmente durante uns segundos. Foi (é-o) uma experiência marcante e decisiva na minha fé; este filme não se aproxima dessa força. Mesmo agora, releio as passagens e não consigo colá-las ao filme. Mesmo que tente.
Conclusão: sinto-me reconfortado por um filme bíblico ter tocado tanta gente, ainda que seja um filme medíocre que contém alusões religiosas com as quais nada partilho. E deixo um pequeno recado aos mais distraídos: leiam o resto da história. É muito mais interessante.
LAC
publicada por Lourenço Cordeiro #
11:53