O PROJECTO

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domingo, junho 20, 2004

 

O presente está passado



«O Instituto Português do Património Arquitectónico impôs a manutenção da fachada do prédio e que a construção obedecesse à traça original.»

Sem rodeios, directos ao assunto: isto é um belo disparate.
Eu percebo o IPAAR. Ou melhor, não percebo, mas finjo que percebo, para tentar iludir-me sobre este tipo de situações. Mais à frente no texto diz-se «(...) tendo havido a preocupação em recuperar o desenho antigo e integrá-lo de forma harmoniosa na área envolvente nesta zona cheia de história.» Devo confessar que ainda não sei bem por onde pegar. Vamos, então, tim tim por tim tim.
Da primeira frase:
«impôs»: acho bem. O IPAAR serve para impôr. Nada a dizer.
«manutenção da fachada do prédio»: passando por cima da palavra «prédio», o que isto quer dizer é que não se podia demolir o existente. Que isso se interprete pela simples «manutenção da fachada», como se isso deixasse vivo alguma coisa, é mais grave. Adiante.
«a construção obedecesse à traça original»: porquê? Pergunto, porquê? Repito, porquê? Olhem bem para o resultado final. Já está? Primeiro, onde está a «traça original»? Segundo, porquê tanto medo? Vale a pena continuar a observar a imagem. O que vemos? Vemos um edifício partido em dois, com um corpo à direita que corresponde ao «original, recuperado e amarelo, e um corpo à esquerda, novo, aberrante. Aberrante? Sim, aberrante. À primeira vista, e num folhear de página distraído, parece tudo a mesma coisa. Mas um olhar menos parvo começa a indignar-se. Repare-se como nem a métrica das janelas se manteve! No novo corpo o espaçamento é bastante mais reduzido. Depois, este vidro medroso (não merdoso, medroso), escondido, mas vidro, porque é moderno. E entrou-se numa loucura demente: quer dar-se um ar de "moderno", catita, novo, mas tudo é feito com o rabo entre as pernas, mantendo a «traça» original. E o pilar, meu Deus! Aquele pilar de canto, o que é aquilo? De onde veio? Onde aterrou? Bem, não me vou chatear mais com isto.
«obedecesse à traça original»: primeiro, não obedece. Depois, o que é «obedecer à traça original»? Depois, porque razão tem de «obedecer à traça original»? Só encontro uma explicação: medo do contemporâneo, um medo comercial e despropositado. Mas lembro, tudo com a conivência do IPAAR.

Vamos à segunda frase:

«recuperar o desenho antigo»: bom, desde que não se deite abaixo, o desenho está lá sempre. Pode recuperar-se a construção, os materiais, os remates, muita coisa. O desenho não. Ou está lá, ou não está. Mas eis que uma negra nuvem cobre o sol. Será que o processo de «recuperação do desenho antigo» diz respeito à nova construção? Não, não pode ser.
«integrá-lo de forma harmoniosa»: e, neste ponto, já sabemos qual a única maneira de «integrar» qualquer coisa. Isso mesmo, fazendo igual. Com o rabinho entre as pernas tremendo que nem varas verdes. Mas lembro que isso nem foi conseguido. Sejamos sérios: ou se perdia a vergonha toda e construía-se exactamente segundo a «traça» e as técnicas originais(ainda que mesmo que fosse em betão ninguém repararia), ou se fazia alguma coisa de jeito, sem medo, com arquitectura, usando uma linguagem de hoje, tornando esta coisa naquilo que verdadeiramente é: um edifício em dois tempos.

O título do artigo (?) que acompanha esta imagem, num suplemento pindérico do Expresso, diz o seguinte: «O passado está presente». Pois bem, pela amostra, parece-me que é exactamente o oposto.

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