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Foi por acaso, como a maior parte das coisas que nos ficam na memória. Andava pelos corredores do lar, em Campo de Ourique, por entre velhos que só precisam de um ouvido para onde falar. Uns mais excêntricos, outros mais recatados. «Querem visitar o Carlos Paredes?», disse a enfermeira que nos acompanhava. Até esse momento, não sabia que ele lá estava, não sabia qual a sua condição, não sabia que estava vivo. Carlos Paredes era um nome, um nome que se tinha deslocado da pessoa para a guitarra. Nesse dia estive junto à cama de Carlos Paredes. Deitado de barriga para cima, muito direito, imóvel. Olhos fechados, um nariz enorme, uma pose intimidatória. Estava vegetal. Não reagia a nenhum estímulo. Apenas um pequeno rádio, que tocava conformado, como quem cumpre uma rotina necessária. «É a única coisa a que ela reage», dizia sobre Carlos Paredes. Naquele momento ficou a dúvida sobre a veracidade da afirmação. No fundo todos queríamos acreditar que o Carlos Paredes não se tinha tornado indiferente à música, a sua vida, apesar de tudo. Parecia sereno. Foi difícil ver alguém que construiu uma fama merecida à custa de um talento físico, os dedos ágeis sobre os trastes, reduzido a um estado de imobilidade transcendente. Um mito à minha frente, vivo, doente. Frágil. É comum dizer-se nestas alturas que «não merecia». Então as atenções viram-se para o pequeno rádio. E lança-se um desejo. Que Carlos Paredes se tenha desprendido do seu corpo, deixado a sua carne e ossos deitada sobre a cama, e que tenha ido ter com o pequeno rádio, fundindo-se no ar com as ondas sonoras. Pura música, sem o cansaço do frágil corpo. Como sempre terá desejado. Naquele dia, há quatro anos (ou cinco talvez), saí do seu quarto convencido de que a música realmente se tinha apoderado totalmente de Carlos Paredes, roubando-o ao mundo.
publicada por Lourenço Cordeiro #
14:17