Contribuições, insultos, projectos de execução, mas principalmente donativos chorudos para:
Muito já foi escrito sobre o assunto. Não pretendo trazer novas luzes a quem anda na escuridão. Não tenho pretensões de ser portador da última explicação.
Contudo o
Picuinhas engana-se. Equivoca-se seriamente. O seu texto é um mar de contradições. Tem dificuldade em perceber o ofício do arquitecto, o que o leva a conclusões nebulosas, pouco coerentes.
Vou dedicar-me portanto a explorar essas contradições.
1. Em primeiro lugar se existe uma Ordem dos Arquitectos é porque a profissão é reconhecida publicamente. É pacífico atribuir aos arquitectos um papel único na sociedade. Um arquitecto não é meio-engenheiro, meio-artista, como explica o
Pedro Jordão. Portanto a actividade de «
erguer edifícios» não é uma pretensão livre que qualquer um pode tomar. É uma actividade profissional regulamentada com sérias responsabilidades. Quando diz que «
os clientes podem escolher o técnico que entenderem para projectar os seus edifícios», o Picuinhas não faz juz ao nome e não percebe quem são esses «
técnicos» que projectam edifícios. Faz vista grossa sobre o assunto e considera que um engenheiro de minas é um «
técnico» que pode «
projectar edifícios». Pois bem, o «
técnico» que projecta edifícios chama-se «arquitecto». Rescrevamos então a frase do Picuinhas: «Os clientes podem escolher o arquitecto que entenderem para projectar os seus edifícios». Assim já estamos a conversar.
2. O Picuinhas continua e diz mais à frente: «
Serão os arquitectos os únicos capazes de projectar “uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”? Claramente, não.» O que o Picuinhas não sabe é que em Portugal como na Europa existe, espantosamente, um curso superior dedicado a formar técnicos que sejam capazes de avaliar as «
dimensões adequadas», as «
condições de higiene e conforto», que saibam avaliar as condições de «
intimidade e privacidade». O Picuinhas acha que estas habilitações são inerentes a quase todos, logo não é necessária uma formação superior que garanta o seu cumprimento. Isso é a sua opinião. E num País livre somos obrigados a respeitá-la. Já é abusivo tentar que a sociedade partilhe da sua subjectiva opinião.
3. Quanto à invocação do artigo 66º da Constituição o Picuinhas mais uma vez comete um enorme equívoco. Sejamos picuinhas e tratemos dos pormenores. É claro que não têm de ser unicamente arquitectos a «
ordenar e promover o ordenamento do território», nem «
criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio». Mas não é isso que está em causa. A
revogação do DL 73/73 visa atribuir exclusividade aos arquitectos no que a
projectos de arquitectura diz respeito. O ordenamento do território e a criação de parques e reservas não são tarefas exclusivas do arquitecto, sendo que os engenheiros, os paisagistas, os economistas, os geógrafos, os sociólogos, entre outros, têm responsabilidades nesse campo. Mas decerto que o Picuinhas sabe disso.
4. Mas eis que o nosso amigo (dito sem ironia) Picuinhas diz algo de espantoso: «
Eu não tenho quaisquer dúvidas acerca das vantagens de recorrer aos serviços de um bom arquitecto». Mas, e estou baralhado, não é este o mesmo Picuinhas que já nos tinha dito que o arquitecto não oferecia nenhuma garantia adicional em relação a outros «
técnicos»? Não é este o mesmo Picuinhas que nos tinha dito que «
certamente» que não eram os arquitectos os únicos capazes de projectar uma habitação de qualidade? Então reparamos no adjectivo «
bom». Aqui o Picuinhas confunde as coisas. Considera que a arquitectura é uma actividade opcional na construção. Podemos construir o que quisermos, e se quisermos até podemos construir bem, e aí recorremos ao arquitecto, ao «
bom» arquitecto. Mas ninguém morre se o edifício não tiver qualidade, desde que não caia, isso era chato, e por isso já exigimos a responsabilidade do engenheiro. O Picuinhas contrata arquitectos porque quer e porque é livre. Outros, especuladores, não contratam arquitectos porque não querem e porque são igualmente livres. E por isso põem no mercado edifícios de habitação precários, sem qualidade arquitectónica, mal implantados urbanisticamente, que são autênticas agressões para o ambiente. E eu como cidadão não tenho nenhuma entidade a quem recorrer nesse caso, porque a única entidade que poderia responder à minha queixa só responde por incompetências dos seus. Só posso exigir explicações das intervenções arquitectónicas à Ordem dos Arquitectos. Se o edifício não é da responsabilidade de arquitecto nada me vale. Quanto ao adjectivo «
bom», pelos «maus» não podem pagar todos os outros. Pelas acções incompetentes de alguns profissionais não é legítimo considerar-se que a arquitectura não é uma actividade altamente exigente e complexa.
5. Chegamos então à contradição-mor do texto do Picuinhas. O Picuinhas por um lado reconhece que «
a arquitectura é um elemento fundamental na história, da cultura e do quadro de vida de cada país.» O Picuinhas reconhece que a arquitectura «
figura na vida quotidiana dos cidadãos como um dos modos essenciais de expressão artística e constitui o património de amanhã». O Picuinhas reconhece também que «
uma arquitectura de qualidade pode contribuir eficazmente para a coesão social, para a criação de emprego, para a promoção do turismo cultural e para o desenvolvimento económico regional.» Volto a lembrar que o Picuinhas reconhece isto tudo. Mesmo. Contudo acha que isto não serve como argumento para a revogação do DL 73/73, que é um argumento muito «
pouco apropriado». Não consigo ser mais explícito a expor esta contradição do que o próprio Picuinhas o foi.
6. Depois por um lado diz que «
a fraca qualidade arquitectónica da maioria das edificações portuguesas decorre de escolhas livres dos clientes.» Logo a seguir pergunta: «
Quem são os arquitectos para se erigirem em padrões do bom gosto?» Mais uma vez o Picuinhas baralhou-me. Então são os clientes ou são os arquitectos? O que é o «gosto»? É de estética que o Picuinhas fala? Então saberá, picuinhas como é, que a estética estuda-se, tem fundamentos teóricos, exige treino. E saberá também que a estética, fundamental na arquitectura, não esgota o seu campo de acção. Apresente-me o Picuinhas alguém que saiba coordenar a complexidade de um projecto de arquitectura, com responsabilidade, com capacidade para se responsabilizar pelas suas consequências, que não tenha formação em arquitectura. Uma única.
7. O Picuinhas levanta também uma questão pertinente. Diz que «
há regulamentos mínimos relativamente às edificações (...) que devem ser cumpridos.» Logo, presume-se, todo aquele que provar cumprir esses regulamentos está habilitado a projectar. O Picuinhas sabe que este modelo de sociedade não corresponde a um país do primeiro mundo. Presumo que o Picuinhas considere Portugal um país do primeiro mundo. Num país do primeiro mundo não se perde tempo nem dinheiro a policiar o trabalho dos outros. Num país de primeiro mundo não se arrasta uma pesada estrutura pública para fiscalizar
a posteriori o trabalho de outros. Não. Num país de primeiro mundo, desenvolvido, é exigido
a priori a responsabilização pelo cumprimento dos regulamentos. Será mais lógico exigir ao arquitecto que se responsabilize pelos seus actos. No caso de isso não acontecer então a Ordem deve actuar pesadamente na punição da incompetência do profissional. Podendo ir mesmo até à expulsão. O que se passa actualmente é uma vergonhosa demissão de responsabilidades. O projectista sabe que se errar não será punido, pois o trabalho foi avaliado por outro e autorizado. É uma atitude bem portuguesa. O sistema assim o permite. E enquanto não se mudarem as coisas, enquanto não se exigir responsabilidades na fonte, então estará a transportar-se para o técnico que avalia, normalmente inexperiente e desinteressado, toda a responsabilidade do que é construído. E a fomentar-se a corrupção. Repare-se, se fosse assim, então teríamos que exigir a contratação dos melhores profissionais por parte das Câmaras para garantir melhor ambiente urbano. Decerto que o Picuinhas, liberal como é, não apoia esta ideia de centralização estatal dos melhores profissionais.
8. Nesta sua argumentação «
contra a revogação do Decreto 73/73», o Picuinhas lança a sua suspeição central. Insinua que esta petição é apenas um mecanismo de garantir emprego aos arquitectos. Isto porque é dito no texto da proposta de revogação que a actual situação que permite a assinatura de projectos por parte de profissionais vários decorre de uma necessidade prática, provocada pela pressão populacional e crescimento acelerado das áreas metropolitanas. Hoje, quando devido a essas mesmas necessidade da sociedade se formaram novos arquitectos, quando se fez um esforço por proporcionar uma oferta ajustada à procura, essa situação é obsoleta. Já não é necessário fazer cedências a profissionais não qualificados. Estamos protegidos dessa situação. Logo, sim Picuinhas, esta proposta é um mecanismo de garantir emprego aos arquitectos. Onde está o problema?
9. «
Se é verdade que há muita edificação em Portugal que não merece ser considerada como resultado do exercício da arquitectura, e que muitas dessas edificações não têm assinatura de arquitecto, é inegável também que existe uma enorme quantidade de obra de arquitectos que, em rigor, também não merece ser classificada como arquitectura.» Já elucidei o Picuinhas que pelos maus profissionais não podem pagar todos os outros. Contudo apraz-me perguntar ao Picuinhas: será que um diagnóstico errado por parte de um médico permite abrir portas ao exercício de medicina a leigos?
10. Quanto a esse direito elementar dos portugueses que é «
o direito a terem mau gosto», francamente aqui o Picuinhas não é rigoroso na sua análise. O Picuinhas sustenta este direito noutro direito mais abrangente, o direito à liberdade. Ao invocar este conceito o Picuinhas certamente saberá as suas implicações. O liberalismo não é sinónimo de anarquia. A liberdade de um acaba quando começa a liberdade do outro. Não podemos aceitar que continue a haver obras que agridam manifestamente o ambiente urbano devido à incapacidade do projectista apenas porque este é livre. Se o projectista é incompetente então temos, agora sim, de ter a livre possibilidade de exigirmos à entidade que representa a classe que responda e tome acções que visem punir a incompetência. A democracia liberal não deixa de ser uma democracia.
11. O Picuinhas tenta então fazer passar a seguinte mensagem: «
Mas a má prática da arquitectura pode levar a consequências tão graves como as da má prática da pilotagem, da construção de pontes ou da cirurgia? A resposta é um enfático não.» Confesso que aqui a minha estupefacção atinge o seu auge. Relembro que o Picuinhas reconhece que «
uma arquitectura de qualidade pode contribuir eficazmente para a coesão social, para a criação de emprego, para a promoção do turismo cultural e para o desenvolvimento económico regional.» Contudo quer fazer-nos acreditar que a má prática da arquitectura não traz problemas graves. Mais uma vez digo que esta atitude representa uma opinião pessoal do seu autor. Prove o Picuinhas o que diz. Não consegue. Numa democracia liberal temos de aceitar esta opinião. Numa democracia liberal não podemos condicionar a prática de uma profissão a simples opiniões.
12. O Picuinhas conclui que a petição é «
corporativista». Porque obviamente não pode ter boas intenções, já que se destina a beneficiar os seus proponentes. Isto porque «
a defesa da arquitectura (...) faz-se com o cliente, não contra ele.» Aqui se percebe o grande equívoco do Picuinhas. O Picuinhas considera que a arquitectura é apenas uma satisfação do cliente. O problema é que isto não é verdade. Além da satisfação do cliente (coisa que não percebo como pode ficar ameaçada com a exclusividade da assinatura do arquitecto) a arquitectura tem uma responsabilidade cívica e social, que ultrapassa as necessidades do cliente. É isto que o Picuinhas não percebe. É aqui que o Picuinhas diverge. É aqui que o Picuinhas entra no campo da opinião. O Picuinhas deveria dizer então: «a defesa da arquitectura faz-se com o cliente
e com a sociedade.»
13. Esta opinião demonstrada pelo Picuinhas dá razão ao Pedro Jordão: «
A esmagadora maioria dos portugueses não sabe verdadeiramente o que é um arquitecto, o que faz. (...) Este é um problema cultural, de raiz.» É também, inconscientemente, um sinal que «
os lobbies das outras classes profissionais são demasiado fortes (...)» É um problema antropológico. O ser humano acha-se capaz de projectar o espaço. Todos já fizemos obras em casa. Todos temos a consciência que sabemos perfeitamente o que é melhor para a nossa casa. Todos sabemos como desenhá-lo. Todos sabemos que o importante e que não controlamos não é do âmbito da arquitectura. Todos sabemos que basta recorrer ao engenheiro para resolver as estruturas e as instalações. Todos dispensamos o arquitecto. Todos estamos errados.
14. Lendo o problema do Picuinhas à luz da sua relação com a arquitectura, de cliente, faz-se luz sobre a intenção da sua atitude contra a revogação do DL 73/73. Devido à precária condição em Portugal a arquitectura está em saldos. A qualidade é má porque é a «lei da selva». Salve-se quem puder. Paga-se 300 contos por um projecto de uma moradia. 300 contos. Que moradia querem por 300 contos? Que podem exigir? É devido à concorrência descabida e perigosa que o sistema permite que a situação atingiu tal ponto. Logo ao Picuinhas sai barato «
contratar arquitectos». Se a situação se alterar talvez o Picuinhas passe a ter de subir a tabela de honorários. O que se percebe perfeitamente. O Picuinhas não quer gastar mais dinheiro. O Picuinhas acha uma chatice ter de pagar mais. Nós percebemos o Picuinhas.
LAC
publicada por Lourenço Cordeiro #
10:34