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terça-feira, maio 18, 2004

 

O equívoco de Vital Moreira

Permito-me discordar de Vital Moreira. Ora vamos lá:

«(...)num regime de separação constitucional entre o Estado e as igrejas, como o nosso, o Estado só pode adoptar uma posição de neutralidade e indiferença em matéria religiosa

Não concordo com a «indiferença». Ser indiferente significa ignorar. Mesmo num Estado laico, não é razoável ignorar a presença das confissões religiosas, e especialmente num país onde a sua história se confunde com a história religiosa. Para o bem e para o mal (acredito que bastante mais para o bem), não faz sentido nenhum adoptar uma posição de indiferença. Neutralidade, talvez, mas indiferença nunca.

«A religião não faz parte da sua agenda. É evidente que não pode hostilizar as igrejas, nem muito menos os crentes.»

Outra confusão. Religião e Igreja. Sem dúvida que a religião não faz parte da agenda do Estado, contudo a Igreja não pode ser tratada como uma simples organização cívica. A Igreja, relembremos, tem uma acção preponderante em campos ligados directamente ao serviço público: a educação, a saúde, a acção social. Nenhum governo em Portugal pode prescindir desta experiência.

«Mas a liberdade religiosa não consiste somente em ter e praticar uma religião, mas também em não ter nem praticar nenhuma. E esta vertente "negativa" da liberdade religiosa também merece a mesma protecção do Estado. Para ele deve ser tão meritória, ou não, a posição do crente mais fundamentalista como a atitude do anticlerical mais militante.»

Não vou comentar a «posição meritória» do «anticlerical mais militante». Mas fica uma preplexidade: porque razão o facto do Estado ter uma relação com qualquer Igreja significa uma hostilização ou desrespeito para quem não tem religião? Onde está a exclusividade? A democracia, que me lembre, ainda se trata de tratar de modo igual aquilo que é igual, e de modo diferente aquilo que é diferente. Discrimiação positiva, caro professor. E neste caso só faz sentido uma discriminação positiva em relação à Igreja Católica. Por muito que isso custe aos «anticlericais mais militantes». Porque se, de um dia para outro, a Igreja deixasse de prestar os serviços que hoje presta, o país ficava a braços com um belo imbróglio.

Quer isto dizer que a Igreja Católica se permite ter previlégios que outras confissões não têm? Teoricamente não. Contudo, há motivos históricos para isso poder acontecer. Porque a Igreja Católica, além de ser uma confissão religiosa, é uma instituição que tem apoiado, substituido, reforçado, amparado, colaborado directamente com o Estado português. No futuro (já hoje se fosse possível), e é o que desejo, todas as confissões religiosas que manifestamente têm uma influência positiva na sociedade portuguesa serão sujeitas a uma discriminação positiva. Não me peçam é para aceitar uma «neutralidade» do Estado em relação à Igreja Católica e à IURD, por exemplo. Isso não aceito.

E pronto. Perdi oficialmente a cabeça. Discuto com um prestigiado professor assuntos onde o meu conhecimento é bastante rasteirinho. Ah, democracia! LAC

Comentários:
O equívoco de quem tem uma visão endógena da coisa

Indiferença não significa ignorar. Significa não diferenciar. Em última análise, o que Vital Moreira pretende insinuar é que, vigorando um regime de separação constitucional entre o Estado e as igrejas, o princípio geral da igualdade expresso no artigo 13.º da CRP tem de ser respeitado nas relações entre o primeiro e as segundas. Como é evidente, a Constituição prossegue uma igualdade material e não meramente formal, pelo que permite discriminações positivas sempre que elas se justifiquem. Não me parece que Vital Moreira se esteja a insurgir contra discriminações positivas que estabeleçam regimes mais favoráveis à Igreja católica, sempre que eles se justifiquem, tendo em conta o serviço público que esta organização presta. Só faz sentido exigir a neutralidade do Estado perante as diferentes confissões religiosas enquanto organizações cívicas, quando elas estejam em igualdade de circunstâncias. Um tratamento igual para a Igreja católica e para a IURD não é neutro. É cego. É estúpido.

Porque é que ?a Igreja não pode ser tratada como uma simples organização cívica??! Porque ?tem uma acção preponderante em campos ligados directamente ao serviço público: a educação, a saúde, a acção social??! Mas muitas outras organizações cívicas a têm. E é por essa razão que beneficiam de regimes favoráveis por parte do Estado, nomeadamente no que diz respeito ao regime de tributação. Só por essa razão! Não por ser uma organização religiosa! Nesse aspecto o Estado tem de ser ?indiferente?, pela simples razão de que isso não lhe diz respeito. Um Estado de Direito Democrárico e laico tem de zelar pela liberdade de consciência, de religião e de culto, tem de impedir discriminações em função da religião, mas não tem, nem pode, tomar posição em matéria de religião. Não lhe cabe a ele esse papel. Assim que o fizer deixa de ser laico.

Sejamos claros. Eu não excluo a hipótese de um Estado Católico (ou de outra qualquer confissão religiosa) poder garantir eficazmente a liberdade de consciência, de religião e de culto. Em abstracto, não há nenhuma razão para que isso não possa acontecer. Mais. Eventualmente, até admito que possa ser mais bem sucedido do que o Estado laico. Basta observar o imbróglio em que a França, o supra-sumo da laicidade, se encontra actualmente com a famosa Lei do Véu.
Agora, se é laico, não pode ter ?uma relação com qualquer Igreja? enquanto confissão religiosa. Isso seria uma aberração lógico-jurídica. Pode tê-la, repito-o, se a igreja for tratada simplesmente como organização cívica e se os serviços por ela prestados à comunidade o justificarem. Precisar este facto pode parecer um pormenor, mas reveste-se, na minha opinião, da maior importância.
 
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