O PROJECTO
Contribuições, insultos, projectos de execução, mas principalmente donativos chorudos para:
blog_oprojecto@hotmail.com (com minúsculas)
terça-feira, agosto 31, 2004
Encontros Imediatos #3: As entranhas
Passada a anestesia injectada ao ar livre, a entrada no museu parece inevitável. Desce-se em direcção à porta, uma atitude bastante pós-moderna, diga-se. O primeiro contacto com o interior parece querer dizer que o espectáculo continua. O átrio sobe até lá cima, livre, com um pé-direito enorme, torcido, semi-transparente. Afinal, o interior parece estar à altura. O que não sabemos é que o átrio é o único espaço do edifício onde há uma correspondência efectiva entre interior e exterior. Ainda assim é um espaço interessante. As pessoas que passam por cima, em passadiços estreitos a diferentes cotas, animam a cena, deixando dúvidas sobre se estamos num museu ou numa sala de espectáculos.
A partir deste momento tudo começa a cair. As salas de exposição são banais divisórias (horizontais e verticais), com uma organização francamente desinteressante. Se não fosse o mapa entregue à entrada ninguém seria capaz de fazer uma visita minimamente tranquila. Mas o pior é que as formas sensuais e provocantes que são apresentadas no exterior não parecem fazer sentido nas salas de exposição, chegando mesmo a atrapalhar. Não é uma visão excessivamente funcionalista, pelo menos assim acho, mas é a constatação do método de Gehry. Um desprezo pelo utente, como parece ser indicado denominar aquele que interage com um edifício. Um desprezo pelo utente, dizia, que não é capaz de se concentrar nas obras expostas. Nem mesmo Rothko (em exposição quando lá estive) consegue introduzir algum silêncio naquela gritaria.
Os momentos mais interessantes da visita ao museu são, oh espanto, quando nos é permitido sair outra vez para umas plataformas condicionadas, qual camarote numa encenação luxuosa. Voltamos a ter uma prespectiva sobre o museu, desta vez diferente, e isso reconcilia-nos por uns breves momentos. Breves porque o calor aperta e rapidamente voltamos para o frio interior.
Finda a visita (não importa continuar a descrever) acontece algo de extraordinário: lançamo-nos numa peregrinação à volta do edifício, à procura de outros motivos de interesse que não se encontraram no interior. Aliás, esta peregrinação é intencional, existe um percurso que fumega (fumega mesmo), sobre o qual o visitante deambula, num enésimo convite à admiração das formas em titânio.
segunda-feira, agosto 30, 2004
Sobre o aborto
Não queria escrever sobre isto, com medo de apenas estar a contribuir para o ruído. Sou contra o aborto. Sou contra a proibição por parte do Estado do aborto. Dito isto, tratada a roupa suja, era só para dizer o seguinte: as mulheres que dizem ter «direito ao seu corpo» são tão deploráveis como as beatas chiques que fazem campanha pelo não. O mal, aqui, reparte-se pelas aldeias. Doze semanas, não é? Como disse, não aceito que o Estado proíba, mas conviria que as Anas Dragos que pulam na margem percebessem que não se trata do «seu corpo», nem de apenas um conjunto de células. Não estou com isto a dizer que o aborto é condenável em todas as ocasiões, apenas que isso não pode ser encarado com tanta ligeireza. Oram diga-me se isto é apenas um conjunto de células. Cabe a cada um decidir.
Week 12 Your baby now weighs around 14 grams, has reflexes and because of muscular development, can even move its limbs! You would now be able to hear your baby's heart beat with the aid of a Doppler ultrasound, which your practitioner should have. Your baby's heart rate will be very fast, at about 160 beats per minute. You'll also now notice a face profile, complete with a tiny chin and nose. The baby is now able to swallow, and its tiny fingernails and toenails are forming.
Oferta pública de compra
A década de 70 é a
minha década. Sem razão aparente, já que nenhum dado biográfico me liga a ela. Mas tudo dos anos 70 me fascina: a música, o cinema, a moda, o estilo, a arquitectura. Bom, serve isto para dizer que vou comprar uma máquina fotográfica. Como não poderia deixar de ser é da década de 70 e é a mais bela máquina jamais inventada. Pode não ter o estatuto da Nikon FM2, mas até isso lhe dá pinta. Uma classe meio banal, meio ordinária. Como a década de 70, se pensarmos bem. Entre a década «free sex» de 60 de fita na cabeça, e a década «break dance» dos 80 de fatos foleiros. Os
seventies, sem dúvida, é que foram.
O ciclo da vida
Na primeira metade do século o Chiado foi o grande pólo comercial, sem rival. As grandes lojas orgulhavam-se de lá estar. Depois das «décadas modernas» de 50 e 60, com uma cidade em expansão, esse pólo deslocou-se para a av. de Roma. No final do século, e através de uma catástrofe, o Chiado renasce e começa a atrair uma geração que nunca por lá tinha passado (a minha). Muito por culpa da FNAC, sem dúvida. Hoje entrei na Bertrand da av. de Roma. Pareceu-me pequena, desarrumada, insuficiente. Pareceu-me em decadência. Da av. de Roma para o Chiado. Das «avenidas novas» para a cidade velha. A cidade é imprevisível. Tem uma vontade própria que às vezes não percebemos.
American way
Vi, no 60 Minutos, algumas entrevistas feitas a John Kerry e a John Edwards, a solo, a dois e a quatro (com as respectivas). O que vi impressionou-me. O grau superficial, encenado, sem convicção, com que os Johns respondiam às perguntas não teria qualquer cabimento na Europa. Ao lado deles, Sócrates é um filósofo profundo.
the mooves
Não percam, a bem da vossa saúde, o ciclo Charles Chaplin em exibição no Alvaláxia. Sim, não é na Cinemateca nem no King, é mesmo nas salas de um centro comercial encastrado num estádio de futebol. Ainda há esperança para a humanidade. E dizem que o Euro não serviu para nada.
P.S: Domingo, 19h00,
O Grande Ditador. Sala quase vazia. Como terá nascido esta benemérita iniciativa?
domingo, agosto 29, 2004
Alegre ordem
Eu não quero ser chato, mas isto é demais. Na página da Secção Regional Sul da Ordem dos Arquitectos, há uma secção chamada «
Recortes de Imprensa», onde se agrupam os artigos publicados que dizem respeito à ordem ou à arquitectura. Pois bem, qual não é o meu espanto ao notar que, dos 3 artigos que lá se encontram actualmente, um deles diz respeito à
campanha eleitoral do PS. Como é que isto diz respeito à Ordem dos Arquitectos? Lá está, a bold e tudo, para nossa compreensão:
«(...)A bastonária da Ordem dos Arquitectos apagava as luzes para se ver o ecrã onde passava uma súmula da moção, era a primeira a puxar palmas ao discurso e, no final, quase sem ajuda dos "homens socialistas", arrumou o ecrã desmontável e ainda as tarjas com o nome do candidato.(...)»
Sem comentários.
fama
O Paulo deixou um comentário ali em baixo que transformo em post (obrigado Paulo):
«Economic migration is still a hard fact of portuguese life, with successful émigrés often marking their return by building a house on a plot of land (the so called 'maisons de reve'). Yet the corrosive effects of this dislocation are evident. Portugal's rural interior remains chronically poor and depopulated, with 80 per cent of the country's population occupying a narrow coastal strip between Lisbon in the south and Viana do Castelo in the north. Somewhat alarmingly, this swathe of more or less continuous suburbia has become one of the most densely inhabited parts of Europe, but the rapidity, vapidity and intensity of such development is clearly not sustainable.
[...]
Portugal's urban landscape is not an inspiring sight, with many fine historic town centers in a dilapidated state, surrounded by chaotic peripheries interspersed with unimaginative new development.»
in Architectural Review, Julho 2004
sábado, agosto 28, 2004
uma palavra vale por mil imagens
Já ouvi muitas vezes fotógrafos fazerem a recomendação a amadores: «tirem muitas fotografias, quanto mais melhor». Devo dizer que discordo. Se por um lado e como em tudo a experiência vale ouro, não é por outro garante de nada e, arrisco, às vezes a quantidade só atrapalha. É sabido que a percentagem do trabalho do fotógrafo que chega a ver a luz do dia é ínfima. Mas isso são os ossos do ofício. Fotografar será sempre olhar. E não é por olhar mais que se olhará melhor. «Tirei 300 fotografias no Guggenheim», disse em jeito de exemplo. Deu tempo para
ver o Guggenheim?, apetece perguntar. «E não é digital», sentiu-se na obrigação de dizer, como que a valorizar ainda mais a quantidade.
a angústia do fotógrafo amador
Lourdes, Agosto de 2004
HENRI CARTIER - BRESSON, (Hyères), França 1932
é tão fácil fotografar-te (3)
Guggenheim Bilbau, Agosto 2004
é tão fácil fotografar-te (2)
Guggenheim Bilbau, Agosto 2004
é tão fácil fotografar-te (1)
Guggenheim Bilbau, Agosto 2004
sexta-feira, agosto 27, 2004
rubbish art
(Via
Marretas):
Funcionária da Tate Gallery deita obra de arte ao lixo. Esta notícia diz mais sobre a «obra de arte» do que sobre a funcionária. Vivemos tempo onde tudo é
arte, onde o artista é livre, onde importa mais o que se diz sobre uma obra do que a obra em si. Os resultados estão à vista.
oh mama mia
Lisboa tem um projecto de Renzo Piano parado em tribunal, um projecto de Siza a ganhar bolor nas estantes da revisão do PDM, um projecto de Jean Nouvel que dizem existir, um projecto de Foster na gaveta abaixo de Siza, um projecto de Gehry que já ninguém sabe no que vai dar. Barcelona, numa assentada, constrói uma torre de Nouvel, um edifício de habitação de Gehry, dois hóteis de Dominique Perrault, e o edifício do Fórum dos Herzog & de Meuron. Depois admirem-se que os Queen nuncam tenham feito uma música chamada «Lisboa».
quinta-feira, agosto 26, 2004
Gaudí
A questão atormenta-me: como se devem tratar os grandes génios? Podem submeter-se aos mesmos parâmetros de avaliação? Ou devem ser intocáveis, imunes na sua unicidade? Gaudí viveu um passo antes da arquitectura moderna. Mas percebe-se que, em Espanha como noutros países, a designação «Modernista» abrace já o período da transição, da arte nova, do ferro e do vidro. Para nós, «Modernista» é de Corbusier para a frente. Acho que é mais correcto. Findo este aparte, vamos ao beato. Numa conversa oiço dizer que «Gaudí é um verdadeiro artista, a sua arquitectura não é apenas arquitectura, é arte». Aliás, Jencks, na sua maravilhosa
tentativa de resumir a arquitectura do sec. XX afirma:
«My argument for placing Antonio Gaudi the best architect of the century, even ahead of Le Corbusier, does not rest on his influence, city planning or theoretical contribution. Rather, it concerns his creative brilliance at turning city building and structure into a high art.»
Contudo, é forçado a admitir mais à frente:
«To say Gaudi was the architect of the century, however, reveals my partiality towards artistic and symbolic architecture, values that other critics, such as Ken Frampton, do not necessarily share.»
Aqui está a questão essencial, e sobre a qual giram todas as polémicas e balançam as diferentes sensibilidades. Considerar que Gaudí é
mais artista do que Mies, por exemplo, é negar em parte a capacidade artística própria da linguagem arquitectónica (e eu não sou muito dado a Mies, como já tenho dito). Gaudí é único, ao passo que Mies não. Mies deixou escola. Lançou conceitos que outros continuaram. Gaudí, pela sua originalidade e criatividade, não possibilitou qualquer continuação da sua obra, ou interpretação. Em parte porque imediatamente depois chegou o modernismo (onde meto para facilitar o funcionalismo, o racionalismo, a abstracção, as formas puras, etc, etc), mas isso não explica tudo. Esse carácter meteórico e genial da obra de Gaudí é o que o torna, aos olhos de muitos, mais
artista do que Mies, Corbusier, ou Lloyd Wright. Mas, e deixando de lado essa questão por agora, mesmo que Gaudí seja
mais artista porque razão tem isso de significar que a sua arquitectura é
melhor? Não sei. Não percebo. É, para mim, a negação da arquitectura, o reconhecimento que a arquitectura não tem, através da sua linguagem corrente, capacidade para ser arte, para ser cultura, para ser expressão. Acho esta postura incorrecta, e neste caso afasto-me de Jencks (que tantas alegrias me dá no seu elogio do pós-modernismo). O Guggenheim de NY, a sua rampa branca e abstracta, é uma experiência tão ou mais
artística do que a visita à Casa Batlló. Aliás, o facto de Gaudí ter esbatido a fronteira entre a arquitectura e a decoração diz muito sobre a sua atitude. E é por isso que não pode ser considerado o maior entre os maiores. Se a arquitectura é a expressão construída do
zeitgeist, então facilmente se percebe que o
zeitgeist do sec. XX (se é que isso existe) não passa pelo simbolismo mas sim pela abstracção. Mas mesmo que se faça o elogio da «originalidade», como Jencks apregoa, mesmo assim não será Gaudí que poderá benificiar dessa postura. Se quisermos escolher o maior entre os maiores, se quisermos fugir a Corbusier (inevitável), então nessa altura seria Lloyd Wright que escolheria. Porque, não sendo
abstracto como Corbusier, utiliza os meios próprios da arquitectura para criar o seu mundo e a sua simbologia (FLW era um místico, muito simbólico). Gaudí, por outro lado, sendo também um místico, não consegue trabalhar apenas dentro da arquitectura, e mesmo os seus gestos estruturais mais notáveis (e são muitos) aparecem invariavelmente adornados à superfície, como que a reconhecer que um bom desenho não chega.
Serve isto para tentar explicar a minha relação com Gaudí. Admiro, posso até gostar, mas não deixa de ser um dos «antigos», da história, do passado. Mies (e dá-me jeito usar Mies neste texto), pouco mais novo, já um dos «modernos», dos contemporâneos. E, não, não me convencem com essa do «artista».
P.S: Lembro-me de recentemente ter ouvido Ana Tostões dar a mão à palmatória. Sempre considerou que a Arte Nova (e Gaudí, por arrasto) não fazia parte da arquitectura moderna. Estudos recentes levaram-na a mudar de opinião, encontrando nessa arquitectura atitudes bem modernas o que elevaram a Arte Nova a um novo patamar na sua consideração. Eu continuo a não conseguir comparar, pode ser que chegue lá um dia.
Barcelona
O plano de Cerdà é «chato», ouve dizer-se. O turista, à caça do pitoresco, do beco, da praça, não gosta do engenheiro. Este, em 1860, traçou um plano hiper-racionalista, antevendo o período moderno, onde a expansão se fazia com base na homogeneidade. Homogeneidade essa que se torna extremamente flexível, capaz de suportar as excepções, as variantes. Mas é um plano de cidade real, não de cidade exposição, ou de cidade feira. Isso viria depois.
Viria no fim do século, com a primeira Exposição Universal, que seguia as pisadas de Londres e Paris (já aqui se percebia a vontade de Barcelona ser algo mais do que a segunda cidade espanhola). Confirmando a teoria da história cíclica, depois do urbanismo de Cerdà chegava a festa da monumentalidade ornamentada e barroca. É desta época que data, como prova, o Arco do Triunfo de Barcelona. Paris fazia muita inveja, era a capital do mundo.
É na segunda grande exposição, em 1929, que Mies se faz anunciar. A urbanização de Montjuic deixa dúvidas sobre a sua data, tais são as referências ecléticas de um passado já o suficientemente distante para dever ser olhado com outros olhos. Sucedem-se arcadas, escadarias, colunas, cúpulas e frontões, em grandes eixos e praças elipsoidais. Isto, lembre-se, no final da década de 20, com os CIAM mesmo à porta. Neste contexto de opulência historicista, o pavilhão de Mies van der Rohe assume-se como uma peça estranha e visionária. A sua reconstrução nos anos 80 no local original foi absolutamente essencial. Hoje, quase 100 anos depois, percebemos o verdadeiro alcance da arquitectura moderna ao sentirmo-nos mais em casa na abstracção de Mies do que nas formas reconhecíveis de um classicismo já demasiadas vezes reinventado. A consciência de que as obras são contemporâneas põe em evidência a história do modernismo como reacção, como algo de absolutamente necessário face à falência de todo o tipo de ecletismos, de revivalismos, de naturalismos, de quaisquer ismos que imperassem na viragem de século. Mies vence. Vence hoje através da mão de Ignasi de Solà-Morales, Cristian Cirici e Fernando Ramos que, ao reconstruirem o pavilhão no seu contexto tornaram viva a história.
O século XX passou bem por Barcelona. Está lá tudo, desde as preocupações com as vias circulares, a reacção à guerra, as preocupações com as periferias nos anos 50-60, a ideia de área metropolitana que se seguiu. E mais eventos excepcionais: os Jogos Olímpicos, em 92, e o Fórum, este ano, que não passam como todos sabemos de pretextos para intervenções urbanas significativas, pois é o único modo de conseguir financiamento para gestos dessa dimensão.
Barcelona é uma grande cidade. Porque respira urbanismo, respira planeamento e respira arquitectura. Gaudí? Deixem-se disso, não passou de um excêntrico genial, de um artista único, e por isso incapaz de deixar escola. Barcelona é muito maior do que isso.
quarta-feira, agosto 25, 2004
as mulheres e a igreja
Brilhante João Miguel Tavares ontem, no
DN:
«Talvez fosse boa ideia o conservadoríssimo Vaticano deixar de reflectir sobre o papel da mulher, porque mesmo quando quer escrever direito utiliza as mais tortas das linhas. A verdade é que a Igreja não faz ideia de como se relacionar com a mulher e a sua especificidade, tendo-a discriminado desde sempre e continuando a discriminá-la nos dias de hoje. O grande problema, como a carta de Ratzinger demonstra na perfeição, é que para a Igreja não existem realmente mulheres: o que existe são mães ou virgens. Se não for uma coisa nem outra, a mulher não se cumpre. Se conseguir ser as duas coisas em simultâneo, será a mulher perfeita - a Virgem Maria.»
Encontros Imediatos #2: «Por fora»
Quando se fala no Guggenheim de Bilbau é frequente ouvir-se frases começadas por «por fora», deixando bem claro que a apreciação que se segue diz apenas respeito ao aspecto exterior do edifício. É caso único? Certamente que não. Mas com Gehry o exterior é tudo. O seu modo de projectar, priviligiando a forma, o volume, a implantação, não deixa margem para dúvidas. É honesto, não engana ninguém. «Por fora» é ele quem manda.
O museu não se impõe ostensivamente. Estando na margem (do rio, da cidade), ocupa um espaço que lhe é dado de bandeja. Um palco. Nesse sentido não interfere com a malha ortogonal, repetida, de Bilbau. Confesso que era isso que esperava, um volume imenso e torcido, aos gritos por todos os lados, criando um ruído insuportável, qual criança chamando a atenção. Não. A malha regular da cidade, daquele bocado da cidade, recebe muito bem o intruso. Aceita-o sem reservas.
O edifício é bonito. As suas formas, «por fora», funcionam. O mundo de magia que sugere, tal é o afastamento da realidade, da gravidade, das leis naturais que sempre condicionaram os edifícios, garante-lhe facilmente o adjectivo de atracção. É dinâmico (palavra que parece ser imperativa nos «dias que correm»), proporcionado, sedutor. Brilha e rebrilha para nosso espanto. Dança à nossa frente, nu, sem qualquer tipo de pudor.
As pessoas navegam à sua volta, de boca aberta, meio à deriva, meio sem sentido.
O «fenómeno Bilbau» é positivo. Lembro-me de alguém perguntar, num debate, a Carrilho da Graça (acho que era ele, não me lembro e também não faz diferença), se não havia o «perigo» que o «efeito Bilbau» se instituisse como norma, tornando o arquitecto um exibicionista, uma estrela inserida no circuito pop. Carrilho da Graça respondeu energicamente «quantos mais efeitos Bilbaos melhor», já que se a arquitectura sofre de alguma coisa é falta de atenção, e não o contrário. Na altura não concordei, estranhei, mas a convicção com que disse aquilo impressionou-me. Hoje percebo. Apesar de como museu ser uma bela merda, apesar de ser bastante arcaico e sem graça como edifício de exposições, apesar de «por dentro» não fazer sentido, «por fora» é um êxito fenomenal, um acontecimento (quase) único, que tudo perdoa, que tudo justifica, que deixa Bilbau mais segura de si.
É claramente um edifício filho da internet, da multiplicação da imagm, da «fotocópia até ao infinito». É um produto do
zeitgeist. Sem conteúdo, com muita
forma. (continua)
terça-feira, agosto 24, 2004
conversas de verão
-É sobre quê, o teu blogue?
-Arquitectura, cidades e sexo.
-É mesmo sobre sexo?
-Não, era só para ver se tu lá ias.
segunda-feira, agosto 23, 2004
Autoestrada
«[...] Viajo pela autoestrada; penso que as pontes que cruzo e que fazem baixar a cabeça ao meu filho, alinhamento de fantasia de longos percursos de verão, são iguais por pequenos grupos, subtilmente diferentes duas a duas, diferentes depois quando se salta de grupo. São os diferentes engenheiros envolvidos. Um escolheu os pilares inclinados, divididos em três formas longilíneas, três vigas fortes a comandar o desenvolvimento da ponte; a outro, o desenho foi de pilares redondos, verticais que seguram o repouso do tabuleiro do viaduto, a passagem de uma bicicleta ou de um tractor deseja a autoestrada em baixo, o ruído cíclico que se desenfia a partir daquele momento da ponte que esconde as origens e os fins do movimento.
Quem anda, a ruralidade lenta que atravessa a ponte por cima, ou os carros que a subpassam ligando os mercados?
Quando o sol já tinha desaparecido por cima da autoestrada vi um Sandman negro de capa púrpura a vigiar as duas pistas; o seu alçado é laminar, apenas um perfil recortado que nós sabemos não ser do mesmo manto que corre a estrada. De que material será o homem de capa negra? Quanto afundam, então, as suas fundações?
Parámos, num domingo à noite, num desses bares de autoestrada onde os olhares são livres porque são olhares de pessoas que vão em viagem. São os mesmos olhares dos aeroportos internacionais: ligeiramente turvos, muito disponíveis, sabendo o risco perfeito de uma ligação sem perigo pois pertencem sempre a destinos diferentes, velocidades diferentes.
Parámos num desses bares; algumas famílias: gente da Mealhada, em programa de ar fresco e picadeiro mundano ou apenas habitantes de carros que se entregariam à estrada quinze minutos depois? A que horas chegariam? Onde?
A certa altura viaja-se a uma velocidade muito grande, está tudo tenso, o condutor comanda o volante, dirige, ultrapassa com rigor, fixa-se na noite, naquela particular cassete; passados momentos, noutra consciência, o carro está parado à porta, numa calma rua de um bairro lisboeta; transbordam-se as malas silenciosamente, os corpos saídos da viagem não sabem ainda o que lhes aconteceu. [...]»
Manuel Graça Dias, , «Autoestradas», O Independente, Lisboa, nº 60, 7 de Julho, 1989
Novidades para os próximos dias
Continuação do Gehry; Barcelona e o cheiro a mijo; o Fórum (e a maquete, as maquetes); Gaudí (vai ser difícil escrever isto); e a pila do Jean Nouvel. Sim, a pila, não me digam que aquilo não é uma pila.
em casa
Há um texto qualquer antigo do Graça Dias que fala sobre autoestradas e estações de serviço. Lembrem-me de o ir buscar, sff.
sexta-feira, agosto 20, 2004
Rambla
Hoje, no meio da multidao praticante de turismo olímpico que enche Barcelona, comprei um cinzeiro. Feito a partir de uma lata de Coca-Cola, cortada na rua por um velho que as oferecia em troco de "un euro". Nao comprei mais nada. Os produtos para turista deixei-os para outros. É uma espécie de defesa, uma tentativa de fazer Barcelona uma cidade genuína em pleno verao. Uma lata de Coca-Cola, nada mais genérico e impessoal, nada menos típico ou local. Um cinzeiro. Feito por quem precisa de "un euro" para comer, sentado na soleira de uma porta velha. Mesmo ao lado de uma montra que vende candeeiros modelo "Gaudí" a precos absurdos, mais absurdos do que o cinzeiro que comprei. Eu, que nao fumo.
(Escrevo num teclao alemao - sem til, sem cedilhas.)
terça-feira, agosto 17, 2004
Próxima paragem:
a cidade de Gaudí e Cerdá. Fresquinho, portanto.
Região demarcada
Através do Sitemeter («régua para medir o tamanho do coiso» para os amigos), descobri que tive uma visita do domínio
gov-madeira.pt. Por lado foi reconfortante porque passei a saber que a Madeira tem um governo; mas por outro fiquei apreensivo: ninguém gosta de ter o Alberto João à perna. Essa é que é essa.
Encontros Imediatos #1: A aproximação à coisa
Tinham-me dito que Bilbau era uma cidade feia. Por cidade feia entendia uma cidade repulsiva, desagradável. Não é. Bilbau é uma cidade sem interesse, chata, sem beleza, sem surpresas. Apesar de não ser feia é totalmente anónima. Nada ficará gravado na memória de quem por lá passa. A malha é regular, ortogonal, com algumas diagonais, umas praças e rotundas tranquilamente inseridas. A construção é de boa qualidade, e a arquitectura média também. «Prédios de rendimento» bem conseguidos. Cromaticamente pouco heterogénea, com o tijolo sempre presente.
Chega-se facilmente ao museu. Bilbao implanta-se junto ao rio, numa área especialmente acidentada topograficamente. Desce-se durante uns bons 20 quilómetros em autoestrada. A placa que diz «Bilbao/Bilbo» surge; continua-se a descer. Pouco depois de a cidade se ter anunciado (já
estamos em Bilbao), e com pouco esforço de orientação tendo em vista que nada se conhecia, o museu apresenta-se, naquele enfiamento de rua, como uma inevitabilidade pacífica (afinal, fomos a Bilbau para
vê-lo, nada mais). Exactamente como nas fotografias. E fica-se com água na boca a sonhar com um hipotético dia em que se chegaria a Bilbao sem saber que ele lá estava. Para que o seu famoso «efeito» fosse real; para que o fenómeno fosse nosso. (continua)
segunda-feira, agosto 16, 2004
Aforismo de férias
As cidades dividem-se entre aquelas que se enchem em Agosto, e aquelas que se desertificam nesse mês.
porquê?
«
(olhando em volta): realmente, aqui parece que vos
dão alguma atenção.» (sendo o
vos toda a classe de arquitectos)
Le Public
A palavra
frança ainda aparece na minha mente associada a coisas positivas (para além da menina Audrey). A noção do
público é francesa. Sem dúvida. A paixão deste povo pela rua, pela praça, pela esplanada, é um fenómeno visceral. Aqui rendo-me. O problema começa quando o
público começa a ser
comunitátio. Não havia necessidade.
domingo, agosto 15, 2004
A verdade é que a arquitectura francesa é melhor do que a britânica e admito que isso é uma realidade difícil de engolir mas prontos
Estou em França. Sou a pessoa menos francófila que jamais pôs os pés na terra. Não estou a exagerar. Nada tenho contra o povo. Mas enerva-me esta suposta superioridade cultural. Enerva-me, pronto. Mas para esfriar o meu espírito penso
neste senhor, ou
neste, ou
neste. Ou então nesta
senhora.
Um agradecimento
ao
arqueoblogo, que dedicou um post aos
archioblogs lusos.
(ainda à sombra dos Pirinéus, apesar de a partir de agora estar on-line)
sexta-feira, agosto 13, 2004
Foi o Taveira outra vez?
Leio, a mil quilometros de distância, sobre um "escândalo das cassetes". Fico intrigado.
demorei 20 minutos a escrever isto
De um cybercafé à sombra dos Pirinéus, percebo que ando a perder um debate (polémica?) sobre masturbação e outras coisas que não tive tempo para perceber, entre um blogue que não conhecia e o
João. Não li quase nada, mas é sò (nos òs sò consigo por esta puta de acento) para dizer que concordo plenamente com o João.
Entretanto sobrevivi ao Guggenheim. Demoro horas para escrever duas palavras (estes franciùs usam teclados AZERT...), por isso o relato fica prometido mas suspenso.
quinta-feira, agosto 05, 2004
1075 km in 10h19 including 954 km in 08h47 on expressways
(O site da ViaMichelin é um mimo.)
Vou. Pelo caminho, um encontro do terceiro grau com Gehry. Até Setembro.
quarta-feira, agosto 04, 2004
em vida
salto para o outro lado
Henri Cartier-Bresson (1908-2004)
volto já
terça-feira, agosto 03, 2004
«mintirosos»
A população gritava
«mintirosos! mintirosos!» e, com o edital a anunciar obras desde 17 de Abril, não há motivo para não lhes dar razão. A indignação virava-se toda para a Câmara Municipal de Lisboa. E com razão. Apesar de o culpado directo ser, obviamente, o proprietário, não se pode aceitar que o Estado não tenha capacidade de intervenção sobre a situação. Porque por mais liberal que seja um país, o Estado é sempre o garante do normal funcionamento das coisas. Não podem cair prédios devido a um proprietário que tem nesse facto um interesse pessoal. Caramba, são 51 vidas que estão em risco (multiplique-se por 20, 50, 100...)
A culpa
da derrocada do edifício de Campo de Ourique reparte-se pelo proprietário, a lei do arrendamento, e o estado. Não necessariamente por esta ordem. Em Portugal não se percebeu ainda que o imposto e as taxas são um instrumento de planeamento. Como foi possível àquele proprietário (que se safou por um triz de 51 homocídios por negligência) deixar que o edifício se degradasse continuamente? Será tão difícil fazer corresponder a contribuição autárquica ao estado de degradação? O que se passa hoje é absurdo: um edifício que sofra obras vê o seu valor subir, logo a contribuição autárquica sobe. O cumpridor é penalizado. E como é possível que o proprietário fizesse obras quando as rendas são de
«quatro contos»? E como pode a câmara tomar posse administrativa de uma centena de edifícios?
chuva
Chove copiosamente em Lisboa, como se não houvesse amanhã, dia três de agosto, depois dos fogos, com a terra ardida. Há coisas que não fazem sentido.
A pé, pela cidade
Desci a av. de Roma. Desde o cruzamento com a «Estados Unidos», a belíssima quadratura moderna, até à praça de Londres. A qualidade da arquitectura não deixa de surpreender sempre. Qualidade que está presente mesmo nos edifícios de «baixa» categoria. A construção em betão e pedra, irrepreensível. Percebe-se porque razão o cinema português das décadas de 60-70 se tenha apaixonado pela cidade, a nova cidade.
«Onde se encontram agora as pessoas que se encontravam no Vává?»
segunda-feira, agosto 02, 2004
«Isto dá um post»
Foi o que pensei ao passar junto ao Estoril-Sol. A mim ninguém me cala! A sua demolição é um dos maiores exemplos de estupidez e incompetência de que há memória no ordenamento do território português. Mas não é só disso que quero falar. Mesmo ao lado, ali a 100 metros à esquerda, está em fase de acabamentos uma moradia ("portuguesa", novo rico, apalaçada, and so on, and so on). A lenga lenga é a do costume. Mas custa a engolir, custa sempre. Saber que um exemplo da boa arquitectura moderna portuguesa vai ao chão para apaziguar meia dúzia de virgens ofendidas, quando ali mesmo ao lado se constrói uma coisa abjecta sem que ninguém o possa impedir. Porque o "gosto" é subjectivo. Não se pode controlar o desenho. Essa é que é essa. Mas esperem lá que vou tirar fotos, ai vou vou.
milagre
Andava no
Causa Nossa a ver gajas, quando me informam do regresso do Luís Camilo Alves à blogolândia. O LCA (que partilha as mesmas iniciais e o mesmo template mas não se confirma que somos a mesma pessoa aliás eu não o conheço de lado nenhum e nunca o vi mais gordo ou mais magro - também não queria estar aqui a ofender) tem muita graça. Muita mesma. O blogue chama-se
Irmã Lúcia.
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